quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Esterilizando o Brilhantismo Literário

Library

Em mais uma de suas belas intervenções no Estado de São Paulo1, o historiador e professor da UNICAMP Leandro Karnal fez referência ao livro Incidente em Antares, de Erico Veríssimo. Referência simultaneamente oportuna e compreensível. O filho desse escritor também é colunista do mesmo jornal, o que dá mais brilho à alusão. Mesmo assim, ela motivou uma reflexão pessoal sobre um assunto um pouco distante do tratado naquela coluna.

Ao ver escrito “Incidente em Antares”, minha memória gritou. Eu tenho esse livro! Fui buscá-lo na minha pequena biblioteca pessoal. Um belo livro: grossura considerável (amo livros extensos), capa azul, título grafado em um lindo tom avermelhado e um conteúdo provavelmente enriquecedor. Mas dois aspectos visuais chamam a atenção. Um deles é o nome do autor escrito em caixa alta: Erico Veríssimo, um dos maiores escritores deste país, homenageado por Carlos Drummond de Andrade quando deixou o nosso mundo2. Outro é uma espécie de etiqueta. Branca e chamativa, nela está escrito “apoio ao saber” ao lado de uma bandeira do Estado de São Paulo. Sim, é um livro gratuitamente distribuído aos estudantes de escolas públicas estaduais. A partir daí minha reflexão viajou.

Uma metáfora bíblica soa boa para o primeiro ponto da minha reflexão. É necessário apenas reduzir seu peso retórico e sua abrangência. "Não atireis vossas pérolas aos porcos" (Mateus 7, 6), aplicada a este contexto, se tornaria "não atireis preciosidades literárias a alunos imaturos". O ato de distribuir gratuitamente livros de grandes autores como o próprio Erico Veríssimo e Carlos Drummond de Andrade é altamente louvável. Livros de altíssima qualidade são entregues àqueles que não possuem condições de acesso aos mesmos, em uma boa parte dos casos. Mas será que esses alunos possuem a maturidade necessária para entender o inestimável valor daquilo que suas mãos seguram? Quantas vezes já não vi livros daqueles jogados pelas ruas! E quanto tempo demorei para entender apenas uma parcela desse valor!

A reflexão aprofunda e chega a um segundo ponto. Dias antes da mencionada epifania, assisti a uma das mais famosas intervenções midiáticas do mesmo Karnal: Hamlet de Shakespeare e o Mundo como Palco3, num programa chamado Café Filosófico. Aliás, lembro das chamadas do Café Filosófico nos intervalos comerciais da TV Cultura, durante minha infância, e do meu julgamento da possível chatice desse programa. Ledo engano: mal imaginava que iria me deliciar com as profundas reflexões despertadas por ele!

Voltando à intervenção karnaliana, naquela ocasião, um dos mais importantes intelectuais do país soltou uma frase que evidencia uma verdade nua e crua: "A escolarização do conhecimento é a esterilização do conhecimento". Em outras palavras, ao ensinar na escola grandes autores, eles perdem seu brilho. Alunos intelectualmente imaturos têm contato com preciosidades literárias inestimáveis, e as reduzem ao nível da chatice tediosa. Prova disso é a alcunha dada por muitos a Machado de Assis. O maior escritor do país é apelidado de "Mais Chato de Assis" e obras como Memórias Póstumas de Brás Cubas tornam-se uma pedra no sapato dos estudantes. Em terras britânicas, Shakespeare é ensinado do mesmo método e sofre do mesmo mal. Cabe ressaltar, em um mundo onde um diploma universitário confere um status estéril ao seu possuidor, que tanto Shakespeare quanto Machado jamais pisaram na universidade. Uma informação com várias interpretações possíveis.

Ainda sou novo demais para observar com nitidez a imensidão de Machado. Também sou muito novo para, como diz o Karnal, “a melancolia do príncipe”4. Mesmo assim uma preocupação me assola: estamos reduzindo a maestria literária à chatice. Não quer dizer que autores contemporâneos desmereçam atenção e valor. Mas o aconchego de um clássico ou de um livro escrito por um grande homem deve ser despido do peso tedioso que nele colocamos e do nosso desprezo por ele. Há muita preciosidade literária esperando para ser consumida! Há um tesouro nas letras esperando para ser encontrado! Temos bússolas ambulantes (muitas vezes denominadas professores) responsáveis por despertar nos alunos a descoberta desse tesouro. Mas não estão amarradas as mãos dessas bússolas com uma certa "burocracia do saber"?
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1. Leandro Karnal – Lembrar e esquecer ou a vida entre Dory e Funes: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,lembrar-e-esquecer-ou-a-vida-entre-dory-e-funes,10000065791
2. Carlos Drummond de Andrade – A falta de Erico Verissimo: http://www.universitario.com.br/noticias/n.php?i=16407 
3. Hamlet de Shakespeare e o Mundo como Palco: https://vimeo.com/126262380
4. Leandro Karnal (postagem no Facebook de 28/03/2016): https://www.facebook.com/prof.leandrokarnal/photos/pb.1603132246595808.-2207520000.1459413682./1696772277231804/?type=1&theater